Existe na filosofia política um conceito, muito utilizado pelos marxistas, que
é a alienação. A palavra alienar significa separar, transferir. Em economia
chamamos alienação o processo em que o trabalhador é separado do conjunto de
toda a produção e tem a sua função limitada a um pequeno aspecto desta.
Por exemplo, um artesão que antes produzia sapatos, agora é um operário
especializado em produzir uma parte do solado. A alienação também se refere ao
fato de o trabalhador ser separado do fruto de sua produção, ou seja, ele não é
proprietário do objeto que produziu e também não é ele quem lucrará com esta
produção.
Também existem outras formas específicas
nas quais a alienação se manifesta, além da alienação propriamente dita, ainda
existem os conceitos de fetichismo da mercadoria e de reificação.
A palavra fetichismo vem de fetiche
(feitiço), isto significa que no atual sistema econômico a mercadoria tem um
status de divindade, prestam-se honrarias à mercadoria e o valor do ser humano
é medido pelos bens materiais que ele possui.
Já a reificação é o processo de
“coisificação” do ser humano. Neste modelo econômico o ser humano é tratado
como uma máquina, como mais uma peça na linha de produção e é privado do seu direito
de sentir e manifestar sentimentos.
Sendo assim, vivemos numa sociedade em
que o ser humano é tratado como um objeto e o objeto é tratado como uma
divindade e, o mais grave, o ser humano está separado de si mesmo, isto é, está
alienado no sentido mais profundo da palavra.
A alienação se manifesta nas mais
variadas esferas da vida humana, nos relacionamentos pessoais, na família, nas
relações sociais e de trabalho e não apenas na produção econômica.
Mas sem dúvidas, existe um aspecto no
qual a alienação ocorre de maneira mais radical nesta sociedade urbana e
superindustrializada, é a alienação entre o ser humano e aquilo que ele tem de
mais divino dentro de si, a alienação espiritual.
Este tipo de alienação se manifesta de
diversas formas e é possível dizer, sem exageros, que ele também está atrelado
à alienação econômica.
O primeiro aspecto no qual o ser humano
se aliena em relação ao espiritual é quando ele é retirado de seu habitat, a
natureza, e passa a viver no meio urbano, se vendo assim como um ser isolado do
resto da natureza. O ser humano não se percebe mais como parte da natureza e
acredita que esta tem um valor funcional, acredita que é legítimo extrair dela
tudo o que puder, e com o avanço da industrialização esta extração se torna
cada vez mais intensa atingindo limites sem precedentes a ponto de tornar os
recursos naturais cada vez mais escassos e deixar o planeta a beira do colapso.
Tudo isso para que as pessoas possam
satisfazer seu consumismo, seus impulsos fetichistas.
E é aí que se dá uma inversão muito
irônica: O ser humano mata seus deuses (pois a natureza é o meio pelo qual a
Divindade se manifesta no nosso planeta) para construir objetos que depois ele
vai cultuar. Aí ele já foi alienado diversas vezes, uma por não se perceber como
parte da natureza e também por ser retirado do seio dela, outra por não
perceber que a natureza é o Sagrado e que ela já nos dá tudo o que precisamos e
outra por tratar o sagrado como algo funcional e por tratar objetos funcionais
como coisas sagradas.
Outro aspecto da alienação espiritual
está bastante ligado à reificação. Quando perguntamos para um ser humano o que
ele é, ele responde normalmente algo ligado à profissão que executa, ao seu
papel no sistema econômico, ao seu status social, enfim, essas coisas
mesquinhas. Ele nunca responde que é um ser divino, uma manifestação da
Divindade, uma parte de um Todo que é Divino, porque o ser humano já não se
enxerga assim. O indivíduo é avaliado pelos demais e se autoavalia pela função
econômica que exerce e, na maior parte dos casos, já se esqueceu, se é que um
dia soube, que existe uma centelha divina dentro de si, que há uma centelha
divina dentro de cada ser. É isso que legitima aos olhos da sociedade as
atrocidades que uns seres humanos cometem uns com os outros, as pessoas não
respeitam nem a divindade que há em si, nem a divindade que há no outro,
vendo-se, assim, como concorrentes, como competidores disputando status e a
posse de coisas que são sagradas e que, portanto, não pertencem a ninguém
exclusivamente, como a terra, por exemplo, e os frutos que ela nos dá.
Aliás, essa própria divisão entre o
eu e o outro deve ser questionada já que do ponto de vista político o ser
humano é um ser social e do ponto de vista espiritual nós somos partes de um
Todo maior e sagrado.
No entanto, há outro aspecto no qual a
alienação espiritual se manifesta, porém este quase nem é percebido, pois já
está extremamente introjetado na sociedade: É a ditadura da ciência, da razão e
do materialismo sobre os aspectos sentimentais e espirituais.
É evidente que a contribuição da ciência
é algo inquestionável e que a razão é um aspecto muito importante na vida
humana, não é isto que está sendo questionado, a questão que se coloca é o que
acontece quando a ciência serve apenas a propósitos materialistas e quando a
razão é fria, desprovida de sentimentos. A história já mostrou o que surge
desta mistura de razão, ciência e materialismo, quando estes três aspectos se
sobrepõem aos demais. Isto leva à bomba atômica, às grandes guerras mundiais,
ao genocídio e a tudo que sirva aos propósitos de acumulação econômica em
detrimento da vida humana.
Parece absurdo. E é absurdo mesmo pensar
que na história recente da humanidade se matavam pessoas portadoras de
necessidades especiais porque estas não podiam produzir e ainda geravam
despesas. Há quem argumente que isso só ocorria em regimes fascistas, pelo
menos oficialmente, mas o que é o fascismo senão esta ditadura da ciência, da
razão e do materialismo levada às últimas consequências, senão o positivismo
levado às últimas consequências.
Mas nós vivemos sob o peso do positivismo
ainda, quem tiver dúvidas quanto a isto é só visitar uma escola e ver com esta
sociedade educa as crianças de uma maneira fragmentada e materialista. Digo, é
claro que o Estado e a educação devem ser laicos, mas daí para afirmar para os
estudantes que uma determinada teoria é a verdade absoluta, como se não
houvesse outros pontos de vista, como se não houvesse outras verdades
possíveis, isto é a ditadura da ciência e da razão.
Pode parecer irônico utilizar conceitos
de economia política para falar de espiritualidade, mas isso não é por acaso.
Isto se dá fundamentalmente porque a economia e a ecologia estão ambas ligadas
àquilo que aqui consideramos a manifestação do Sagrado: a natureza.
A raiz etimológica destas duas palavras é
a mesma: Ekos, que vem do grego e significa casa, ou seja, o
planeta, a própria natureza.
Enquanto a ecologia é o estudo do ekos,
da natureza, a economia é o estudo da racionalização dos recursos do ekos, da
natureza, ou seja, é a forma que as sociedades encontram de utilizar o
potencial da natureza de uma maneira equilibrada, de modo que as pessoas
consigam garantir a sua sobrevivência e garantir, ao mesmo tempo, a preservação
destes recursos.
Sendo
assim, a alienação do indivíduo em relação ao seu aspecto espiritual serve a
propósitos econômicos, serve à sua exploração econômica.
E
surge a partir do momento em que as sociedades se dissociam, se alienam do
caráter sagrado da natureza e passam à vê-la apenas como algo funcional, que
deve servir aos propósitos egoístas do seres humanos, que, como dissemos, já
não se percebem mais como seres naturais.
A solução para a sociedade, então, seria
a superação desta contradição, entre natureza/humanidade/espiritualidade versus
economia, já que a própria etimologia nos mostra o quanto essa contradição é
falsa.
Em síntese, a solução passaria por vários
aspectos. O primeiro é que na esfera individual as pessoas retomassem essa
consciência do sagrado que há em si e em cada ser humano. Que na esfera social
as pessoas se organizassem a partir de laços de solidariedade e fraternidade,
liberdade e companheirismo, ou seja, que a organização política da sociedade se
construísse a partir de certos valores universais dos quais tanto se fala e
pouco se pratica hoje em dia. E que na esfera econômica a sociedade encontrasse
uma forma de produção que respeitasse os limites da natureza, mas não apenas a
sustentabilidade marqueteira, mas um modo de produção que não sobrepusesse o tecnicismo
e a produção desenfreada de mercadorias aos valores humanos e naturais.
Para isso seria necessário que antes,
nós, seres humanos, superássemos nossos ímpetos consumistas e fetichistas e nos
voltássemos para aquilo que de fato importa: a valorização do sagrado. Do
sagrado que há em cada um de nós e que nos circunda, a nossa Mãe-Natureza que
nos dá tudo aquilo de que necessitamos e que há milênios a humanidade vem
espoliando em nome de regimes econômicos que se baseiam na falsa ideia de que o
ser humano é algo separado da natureza e que esta deve servir aos seus
propósitos, regimes que perpetram e perpetuam a alienação espiritual, pois se
valem dela para lucrar com os falsos deuses que se vendem nas lojas e
concessionárias.
Audrei Teixeira
Abril de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário