segunda-feira, 10 de março de 2014

Alienação econômica e espiritual


            Existe na filosofia política um conceito, muito utilizado pelos marxistas, que é a alienação. A palavra alienar significa separar, transferir. Em economia chamamos alienação o processo em que o trabalhador é separado do conjunto de toda a  produção e tem a sua função limitada a um pequeno aspecto desta. Por exemplo, um artesão que antes produzia sapatos, agora é um operário especializado em produzir uma parte do solado. A alienação também se refere ao fato de o trabalhador ser separado do fruto de sua produção, ou seja, ele não é proprietário do objeto que produziu e também não é ele quem lucrará com esta produção.

Também existem outras formas específicas nas quais a alienação se manifesta, além da alienação propriamente dita, ainda existem os conceitos de fetichismo da mercadoria e de reificação.

A palavra fetichismo vem de fetiche (feitiço), isto significa que no atual sistema econômico a mercadoria tem um status de divindade, prestam-se honrarias à mercadoria e o valor do ser humano é medido pelos bens materiais que ele possui.

Já a reificação é o processo de “coisificação” do ser humano. Neste modelo econômico o ser humano é tratado como uma máquina, como mais uma peça na linha de produção e é privado do seu direito de sentir e manifestar sentimentos.

Sendo assim, vivemos numa sociedade em que o ser humano é tratado como um objeto e o objeto é tratado como uma divindade e, o mais grave, o ser humano está separado de si mesmo, isto é, está alienado no sentido mais profundo da palavra.

A alienação se manifesta nas mais variadas esferas da vida humana, nos relacionamentos pessoais, na família, nas relações sociais e de trabalho e não apenas na produção econômica.

Mas sem dúvidas, existe um aspecto no qual a alienação ocorre de maneira mais radical nesta sociedade urbana e superindustrializada, é a alienação entre o ser humano e aquilo que ele tem de mais divino dentro de si, a alienação espiritual.

Este tipo de alienação se manifesta de diversas formas e é possível dizer, sem exageros, que ele também está atrelado à alienação econômica.

O primeiro aspecto no qual o ser humano se aliena em relação ao espiritual é quando ele é retirado de seu habitat, a natureza, e passa a viver no meio urbano, se vendo assim como um ser isolado do resto da natureza. O ser humano não se percebe mais como parte da natureza e acredita que esta tem um valor funcional, acredita que é legítimo extrair dela tudo o que puder, e com o avanço da industrialização esta extração se torna cada vez mais intensa atingindo limites sem precedentes a ponto de tornar os recursos naturais cada vez mais escassos e deixar o planeta a beira do colapso.

Tudo isso para que as pessoas possam satisfazer seu consumismo, seus impulsos fetichistas.

E é aí que se dá uma inversão muito irônica: O ser humano mata seus deuses (pois a natureza é o meio pelo qual a Divindade se manifesta no nosso planeta) para construir objetos que depois ele vai cultuar. Aí ele já foi alienado diversas vezes, uma por não se perceber como parte da natureza e também por ser retirado do seio dela, outra por não perceber que a natureza é o Sagrado e que ela já nos dá tudo o que precisamos e outra por tratar o sagrado como algo funcional e por tratar objetos funcionais como coisas sagradas.

Outro aspecto da alienação espiritual está bastante ligado à reificação. Quando perguntamos para um ser humano o que ele é, ele responde normalmente algo ligado à profissão que executa, ao seu papel no sistema econômico, ao seu status social, enfim, essas coisas mesquinhas.  Ele nunca responde que é um ser divino, uma manifestação da Divindade, uma parte de um Todo que é Divino, porque o ser humano já não se enxerga assim. O indivíduo é avaliado pelos demais e se autoavalia pela função econômica que exerce e, na maior parte dos casos, já se esqueceu, se é que um dia soube, que existe uma centelha divina dentro de si, que há uma centelha divina dentro de cada ser. É isso que legitima aos olhos da sociedade as atrocidades que uns seres humanos cometem uns com os outros, as pessoas não respeitam nem a divindade que há em si, nem a divindade que há no outro, vendo-se, assim, como concorrentes, como competidores disputando status e a posse de coisas que são sagradas e que, portanto, não pertencem a ninguém exclusivamente, como a terra, por exemplo, e os frutos que ela nos dá.

 Aliás, essa própria divisão entre o eu e o outro deve ser questionada já que do ponto de vista político o ser humano é um ser social e do ponto de vista espiritual nós somos partes de um Todo maior e sagrado.

No entanto, há outro aspecto no qual a alienação espiritual se manifesta, porém este quase nem é percebido, pois já está extremamente introjetado na sociedade: É a ditadura da ciência, da razão e do materialismo sobre os aspectos sentimentais e espirituais.

É evidente que a contribuição da ciência é algo inquestionável e que a razão é um aspecto muito importante na vida humana, não é isto que está sendo questionado, a questão que se coloca é o que acontece quando a ciência serve apenas a propósitos materialistas e quando a razão é fria, desprovida de sentimentos. A história já mostrou o que surge desta mistura de razão, ciência e materialismo, quando estes três aspectos se sobrepõem aos demais. Isto leva à bomba atômica, às grandes guerras mundiais, ao genocídio e a tudo que sirva aos propósitos de acumulação econômica em detrimento da vida humana.

Parece absurdo. E é absurdo mesmo pensar que na história recente da humanidade se matavam pessoas portadoras de necessidades especiais porque estas não podiam produzir e ainda geravam despesas. Há quem argumente que isso só ocorria em regimes fascistas, pelo menos oficialmente, mas o que é o fascismo senão esta ditadura da ciência, da razão e do materialismo levada às últimas consequências, senão o positivismo levado às últimas consequências.

Mas nós vivemos sob o peso do positivismo ainda, quem tiver dúvidas quanto a isto é só visitar uma escola e ver com esta sociedade educa as crianças de uma maneira fragmentada e materialista. Digo, é claro que o Estado e a educação devem ser laicos, mas daí para afirmar para os estudantes que uma determinada teoria é a verdade absoluta, como se não houvesse outros pontos de vista, como se não houvesse outras verdades possíveis, isto é a ditadura da ciência e da razão.

Pode parecer irônico utilizar conceitos de economia política para falar de espiritualidade, mas isso não é por acaso. Isto se dá fundamentalmente porque a economia e a ecologia estão ambas ligadas àquilo que aqui consideramos a manifestação do Sagrado: a natureza.

A raiz etimológica destas duas palavras é a mesma: Ekos, que vem do grego e significa casa, ou seja, o planeta, a própria natureza.

Enquanto a ecologia é o estudo do ekos, da natureza, a economia é o estudo da racionalização dos recursos do ekos, da natureza, ou seja, é a forma que as sociedades encontram de utilizar o potencial da natureza de uma maneira equilibrada, de modo que as pessoas consigam garantir a sua sobrevivência e garantir, ao mesmo tempo, a preservação destes recursos.

Sendo assim, a alienação do indivíduo em relação ao seu aspecto espiritual serve a propósitos econômicos, serve à sua exploração econômica.

E surge a partir do momento em que as sociedades se dissociam, se alienam do caráter sagrado da natureza e passam à vê-la apenas como algo funcional, que deve servir aos propósitos egoístas do seres humanos, que, como dissemos, já não se percebem mais como seres naturais.

A solução para a sociedade, então, seria a superação desta contradição, entre natureza/humanidade/espiritualidade versus economia, já que a própria etimologia nos mostra o quanto essa contradição é falsa.

Em síntese, a solução passaria por vários aspectos. O primeiro é que na esfera individual as pessoas retomassem essa consciência do sagrado que há em si e em cada ser humano. Que na esfera social as pessoas se organizassem a partir de laços de solidariedade e fraternidade, liberdade e companheirismo, ou seja, que a organização política da sociedade se construísse a partir de certos valores universais dos quais tanto se fala e pouco se pratica hoje em dia. E que na esfera econômica a sociedade encontrasse uma forma de produção que respeitasse os limites da natureza, mas não apenas a sustentabilidade marqueteira, mas um modo de produção que não sobrepusesse o tecnicismo e a produção desenfreada de mercadorias aos valores humanos e naturais.

Para isso seria necessário que antes, nós, seres humanos, superássemos nossos ímpetos consumistas e fetichistas e nos voltássemos para aquilo que de fato importa: a valorização do sagrado. Do sagrado que há em cada um de nós e que nos circunda, a nossa Mãe-Natureza que nos dá tudo aquilo de que necessitamos e que há milênios a humanidade vem espoliando em nome de regimes econômicos que se baseiam na falsa ideia de que o ser humano é algo separado da natureza e que esta deve servir aos seus propósitos, regimes que perpetram e perpetuam a alienação espiritual, pois se valem dela para lucrar com os falsos deuses que se vendem nas lojas e concessionárias.

 

 



                                                                                        Audrei Teixeira

                                                                                         Abril de 2013